Em um mês, a decisão sobre a divisão do estado do Pará será votada em plebiscito. O assunto diz respeito não somente à população daquele estado, mas à população brasieira como um todo.
Nesta semana, fujo mais uma vez do formato de conversa em vídeo, tradicionalmente usado no blog, desta vez para trazer um texto do professor Jairo Souza, da Universidade Federal do Pará, problematizando não somente a questão da divisão do Pará, mas também a situação econômica e social do estado como um todo.
"Pelo Sim Pelo Não, Tenho Cá Minhas Dúvidas!"
Jairo Souza
No domingo do dia 11 de dezembro de 2011, o povo do estado do Pará participará de um plebiscito em que será votado a criação ou não de mais dois estados na região norte do Brasil: os estados do Tapajós e do Carajás, que se localizam dentro da área que compõe o atual Pará. Antes de tratar dessa questão especificamente, faço aqui um convite a uma reflexão. Creio ser importante pensarmos um pouco sobre a realidade desta região. Até porque corremos o risco de ficarmos na passionalidade do SIM e do NÃO que infelizmente tem pautado toda a discussão, deixando de lado importantes aspectos de relevância crucial para um debate mais lúcido, esclarecedor e menos passional sobre o próprio plebiscito e toda a região.
Tradicionalmente, a região norte é o espaço dos grandes projetos, e por conseguinte, da promessa de um futuro melhor para muita gente que se dirige ao norte do país. A falta de mão-de-obra qualificada sempre se configurou também numa das razões da enorme leva de trabalhadores para esta região, que nunca possuiu infra-estrutura para receber tanta gente em tão pouco tempo. Um exemplo foi a construção da hidrelétrica de Tucuruí nos anos 70, obra que chegou a ter ao longo de sua construção até 40.000 homens trabalhando. Na época, Tucuruí chegou a ser considerada a cidade do Brasil com o maior número de prostitutas, o que nos leva a pensar numa série de problemas e outras questões decorrentes de tal situação.
A riqueza e a potencialidade econômica do Pará sempre atraíram e atraem até hoje gente de todo o Brasil. O futuro desse estado está intrinsecamente ligado à mineração. Hoje, o Pará é o segundo estado que traz mais divisas para o Brasil, é o terceiro maior exportador de energia com o uso de hidrelétricas, o maior produtor e exportador de minério de ferro do mundo como unidade federativa e possui o maior trem de carga do mundo, com uma extensão aproximada de 4km de vagões, que faz várias viagens diárias saindo da região de Carajás para o porto de Ponta da Madeira no estado do Maranhão. Em julho de 2011, a companhia Vale começou a operar com navios no Maranhão com capacidade para levar até 450.000 toneladas de minério, valores e dados que, mais do que impressionantes, deveriam funcionar como fatores de desenvolvimento social para a sociedade da região. As discussões sobre o Pará são sempre superficiais e movidas com um tom de paixão, e se resumem ao sim ou não, sou contra ou sou a favor, como no caso de Belo Monte ou do próprio plebiscito em 2011.
Como sempre, crescimento econômico não necessariamente representa desenvolvimento para um país ou região. Este é o caso do Pará. O processo se intensificou com a privatização da companhia Vale do Rio Doce nos anos 90. A Vale hoje é uma das maiores corporações empresariais do mundo e responsável por lucros exponenciais a partir da extração do minério do solo paraense. Com essa empresa privada, isenta de ICMS, instituído injustificadamente pela lei Kandir, o cidadão brasileiro, e mais precisamente quem vive na região norte, fica privado de participar ou usufruir da riqueza extraída de seu próprio território. Os royalties que a Vale paga ao estado são mais do que uma obrigação social de uma empresa que "arranca" dessas terras recursos naturais não-renováveis. A exploração de toda a riqueza mineral e da própria região amazônica jamais se reverteu em desenvolvimento ou melhoria na qualidade de vida de seu povo. Há um paradoxo que se estabeleceu na região – o paradoxo das grandes riquezas, grande pobreza - os lucros gerados pela exploração dos recursos naturais são cada vez maiores, entretanto, para o povo só restam os números dos crescentes níveis de violência, aliada ao trafico de drogas e miséria que se alastram por toda a região. É como se fosse a maldição de viver em terras ricas. Quanto mais riqueza se extrai do lugar, mais pobre o povo fica. É como ganhar na loteria e ficar a cada dia mais distante de receber o prêmio.
Projetos como a construção de hidrelétricas (Tucuruí e mais recentemente Belo Monte na região do Xingú), o beneficiamento do minério e lâminas de aço (ALPA) que se implantam hoje na cidade de Marabá renovam as esperanças de um futuro melhor. Da mesma forma, o plebiscito em dezembro carrega consigo este sentimento atraindo, na esperança de empregos, milhares de pessoas que mais uma vez deixarão sua terra natal em direção ao sudoeste do Pará, um ciclo que se repete há décadas. Alguém ainda se lembra de Serra-Pelada com a promessa de ouro e riqueza? Nada disso, o que se vê em volta das cidades é a falta de infra-estrutura e a total carência de serviços públicos, os mais essências: falta saúde, educação e segurança, particularmente nas áreas chamadas de "invasões", sinônimos de favela. Na hora de decidir algo importante, quem toma frente às discussões são grupos empresariais ligados a partidos políticos no poder ou lutando por ele. Um agravante é o fato de os meios de comunicação de maior popularidade, TV, rádio e jornais, serem todos empresas privadas comprometidas com o interesse de famílias ricas da região e que manipulam a opinião pública ao seu bel-prazer e se comprometem apenas com questões comerciais e corporativas.
De acordo com Lúcio Flavio Pinto, jornalista paraense do município de Santarém (cidade candidata a se tornar capital do Tapajós) e um estudioso da região há muitos anos, o povo paraense está alheio a tudo o que se passa nesta região. "Faltam lideranças políticas" diz o jornalista, que acredita que o único nome do qual se lembram como líder político é o do ex-senador e ex-governador do estado Jáder Barbalho. Para Lúcio, Jáder representaria uma prova do quanto a região está longe de se libertar de um estigma de atraso, corrupção e abandono. As nações indígenas massacradas historicamente, a chamada "pistolagem" com uma lista infinita de assassinatos impunes e outros prestes a acontecer, a grilagem de terras e a complicada e também já questionada reforma-agrária são apenas algumas das questões que se "arrastam" por décadas; resultado da manutenção no poder de políticos corruptos e de um poder público eternamente ausente sempre com a desculpa das dificuldades de acesso devido à extensão continental do território. Além disso, o papel do homem público ou do político se camufla e se confunde com outros papéis sociais - a figura recorrente nessas terras é a do político fazendeiro, empresário e acusado de uma série de crimes. Inclusive, no caso de Jader Barbalho, mesmo impedido de assumir nas últimas eleições o cargo de senador porque foi condenado como ficha-suja, foi um dos políticos mais votados em todo o país. Alguns consideram-no o "Maluf" do norte do Brasil.
O jornalista Lúcio Flávio Pinto é um jornalista de vanguarda (um dos poucos) da região e aponta uma série de problemas na proposta de redivisão política e da criação dos estados de Carajás e Tapajós. Uma das questões levantadas pelo jornalista é o fato de nunca ter sido apresentado de forma clara um estudo que justifique a divisão geográfica da maneira como está proposta no novo mapa da região ou um projeto que se configure como legítimo de representatividade popular. Os movimentos populares, sindicatos trabalhistas, movimentos religiosos, pastorais da igreja católica, as nações indígenas e muitas outras organizações de cunho popular não participaram da construção desse projeto de novo estado; quando consultadas, é muito mais em forma de convite à aceitação de uma proposta já elaborada por grupos com interesses muito particulares e distantes de contemplar uma abordagem realmente democrática. Além disso, existem questões culturais, sociais e econômicas pré-estabelecidas entre determinados municípios que estão sendo completamente ignoradas no "desenho" dos novos estados e que, segundo Lúcio Flavio, só vão agravar ainda mais os problemas da região. O jornalista cita como exemplo dois municípios: Santarém e Altamira, que a princípio se localizariam dentro do novo estado de Tapajós. O problema é que as duas cidades não têm uma relação, nem vínculos econômicos e culturais muito fortes. A cidade de Altamira provavelmente ficaria ainda mais isolada com a criação do Tapajós, pois atualmente Altamira tem mais proximidade econômica com Marabá, que seria capital de Carajás, um outro estado. Tudo isso envolveria taxação diferenciada de mercadorias e aumento nos custos de circulação de produtos, já que Altamira e Marabá passariam a se localizar em estados distintos. Este é apenas um dos exemplos da complexidade da conjuntura em que se encontram as cidades dessa região. Não se trata aqui de discutir o SIM ou o NÃO do plebiscito, mas sim de problematizarmos e refletirmos sobre os prós e contras da criação de novos estados. Afinal, as mudanças previstas ou manutenção do atual estado interessam a quem?
Há também aspectos de cunho antropológico, como o de uma miscelânea cultural na região; fator muitas vezes contraditório, pois ao mesmo tempo em que a região atrai pessoas de todo o país em busca de emprego, não há um sentimento muito claro de pertencimento ou identificação com a região e nem há interesse algum de criar raízes com o lugar, fortalecendo sentimentos “bairristas” entre os habitantes de cidades como Marabá, um dos principais pólos da região. Muitos fazem questão de lembrar que até podem ter nascido no norte, mas sua família é originalmente de uma outra região do Brasil, mais desenvolvida e por conseguinte melhor. Estes sentimentos contribuem para que se mantenha um estigma negativo com o local onde se trabalha e onde se vive. O norte do Brasil, ainda hoje, vive sob um paradigma e um estigma de colônia, local "atrasado", de um povo "preguiçoso", lugar de onde se extrai o que se pode, para um dia se mudar e viver em um lugar melhor e não construir nesta região esse lugar. Desta forma, sem comprometimento dos locais e influenciados por uma lógica "burra" e distorcida de exploração, os recursos da região estão sendo consumidos em altíssima velocidade há anos e as questões sociais, como os investimentos no desenvolvimento humano (saúde e educação), ficam sempre em último plano.
A proposta de divisão, criação de novos estados ou de manter o atual Pará podem ter em si, se analisarmos, muitos aspectos positivos, entretanto, a forma como esses projetos se apresentam só demonstra que há muito mais um interesse na manutenção de uma política capitalista neo-liberal, de extração e esgotamento dos recursos naturais, sem uma prática sustentável (na melhor concepção possível do termo), e de consumo, exclusão social e criminalização dos movimentos sociais. Em outras palavras, independentemente do resultado do plebiscito em dezembro de 2011, não há sinais de um projeto popular de mudanças concretas, criado a partir da aplicação e usufruto dos recursos naturais de forma transparente, ou ainda, de uma política que se proponha a elevar a qualidade de vida do povo dessa região. Os partidários do SIM e do NÃO estão mais preocupados em conseguir um "lugar ao sol" junto aos seus pares do que com o estabelecimento de um novo paradigma para a região norte. Novos estados ou a manutenção do status quo representam muito mais interesses particulares em jogo do que um projeto com vistas num futuro melhor para esta região ou para o Brasil. Fica a pergunta: será que um dia o Pará se libertará de seu estigma de colônia dentro de seu próprio país? A resposta não parece ser tão simples quanto um SIM ou um NÃO em uma urna eletrônica.
Jairo, excelente argumentação, parabéns!!! O caso de Altamira é realmente peculiar e ilustra bem a complexidade da proposta. A propaganda política referente ao plebiscito inicia hoje, 11 de novembro. Vamos acompanhar, na esperança de que verdades sejam ditas, para além dos interesses pessoais e passionais. Valeu, Jairo, pela contribução, e Dudu, pelo espaço a esse tipo de debate. Aline
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