quarta-feira, 21 de março de 2012

Memórias do Deserto

Por Milena Argenta, antropóloga [i]


“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.”

(José Saramago – Viagem a Portugal)


Deserto. Terra de pura possibilidade, de desejo e medo. Inacessível, inexistente, um objeto de divagação, uma negação que gera tamanha ansiedade com a possibilidade imaginativa que ele oferece e ao mesmo tempo nega, pela impossibilidade de dominá-lo, de visualizar o outro lado. Sua inacessibilidade é assustadora e tem um papel determinante em nossa percepção daquilo que, ingenuamente, tomamos por acessível, que podemos perceber, vivenciar, tocar. Imaginável, porém, o inacessível se torna elusivo: a partir da ausência, daquela presença imaginada, construímos nossas percepções do que se mostra aos nossos olhos[ii]. Como não se fascinar com a irrealidade do deserto, sua possibilidade, o jogo de real e miragem que ele propicia?

Com este fascínio, mistura de euforia e medo, parti rumo ao outro lado do Atlântico. Lá, entre as dunas de areia do deserto do Namibe e o município do Tômbua, a savana extensa que se espalha do Virei ao Kuroca e mais ao sul até o Iona, confrontei a minha África imaginada, musicalmente idealizada e ao mesmo tempo depreciada pelos olhares obscuros que circulam do lado de cá, com a África dos sujeitos reais, que constroem seus caminhos ao longo da caminhada, improvisam com criatividade num cotidiano culturalmente rico, guiados por uma sabedoria ancestral que se renova a cada passo. Há, certamente, muitas Áfricas, urbanas e globalizadas, tecnológicas, dos Iphones, Ipads, Land Rovers e demais artigos de luxo que do lado de cá imaginamos como exclusivamente nossos. Há sim a África que ainda sofre com o peso de um colonialismo que nunca acaba, da exploração desgovernada, da pobreza, das doenças e outras mazelas, mas esta é a África que o resto do mundo pensa que já conhece. O meu convite aqui é para viajarmos por uma África que é muito minha, já que as histórias são sempre contadas a partir dos olhos de quem vê e constrói uma narrativa. Mas é também a África dos pastores do sudoeste de Angola, que se deslocam em transumância entre o deserto, a savana e a estepe, uma região de extensas terras comunais e pastagens naturais, de belezas exuberantes.


Foto 1: Detalhe da mãe que leva seu bebê às costas. Região do Kuroca, província do Namibe, Angola. Setembro de 2011.


Extremo sul de Angola, sob um sol que arde e distorce os contornos do horizonte distante, dunas de areia reluzem em dourado brilhante, crescem e desaparecem, movem-se com o vento em formas mutantes, estendem-se para além do alcance dos olhos ansiosos. A vista é horizontal e extensa, rasgada, é a paisagem que conduz o olhar. Uma leitura só possível: “largar o olhar pela esteira oblíqua dos ocres que se cruzam vastos e rasteiros, velozes, sem fim nem começo, uns derramados de outros, depois soltos, a renovar matizes ao sabor do vento”[iii]

Foto 2: Casas na à beira da lagoa, no oásis de Njambasana, Kuroca, Namibe. Outubro de 2011.


A oeste, próximo à costa, formam-se oásis e se precipitam lagoas de sal. É onde vai beber o gado conduzido por um pastor há dias em transumância, a procura de água e sal ao sol. Está em busca das pastagens naturais que ele bem sabe onde e quando lhe convém encontrar, e conduzir até lá o gado do qual toma conta, do seu pai ou do seu avô, algumas cabeças são suas, recebidas como herança no funeral de seu tio materno.

Foto 3: Bezúa, jovem pastor em sambo no Kuroca. Setembro de 2011.


É jovem ainda, deleita-se em algazarras libidinosas com meninas também em idade de sexualidade irreprimível e ansiosa, e descansa nos sambos, acampamentos que acolhem os pastores após longos dias e noites silenciosas de trânsito. O gado é a jóia em torno da qual giram os mistérios destes lados e por isso é acumulado e não consumido. É a ele, disperso, espalhado nas mãos de muitos homens e em quantidade muito maior do que o que se mantém aos seus pés, que se deve toda a riqueza de um homem do deserto.

Foto 4: Gado da região do Iona, extremo sul da província do Namibe. Novembro de 2011.


Por caminhos de areia e arbustos secos de acesso restrito aos caminhantes, no máximo aos ruminantes, elas surgem às vistas... filhas da areia escaldante e do horizonte, crestadas pelas nuances das miragens, afagadas pelo sol. As mulheres exibem um caminhar lento, jamais com pressa, uma arte de andar leve e ao mesmo tempo firme, com seus rebentos presos às costas, equilibrando trouxas, bacias ou maços de lenha no topo da cabeça.

Foto 5: Mulheres transportando galhos para a construção de uma casa. De trás para frente: Kai, dona Joaquina Muantengulila e Ana Paula Tuya. Kuroca, Namibe. Setembro de 2011.


Os corpos perfumados e ornamentados com panos, contas, pulseiras, tiras de couro, braços e pernas, sorridentes, fortes. São elas que transmitem às gerações seguintes as linhagens que unem grupos e designações étnicas diversas, Kuvale, Himba, Curoca ou Kwepe, em famílias mais amplas que se espalham por um vasto território de cultura pastoril.

Foto 6: Mukaakito. Kuroca, Namibe. Setembro de 2011.


Foto 7: Bavaluluca. Kuroca, Namibe. Setembro de 2011.


As crianças aprendem desde pequenas a pastar o gado, a reconhecer cada uma das plantas e arbustos que os cercam, percebem a presença oculta de animais selvagens em rastros e pegadas na areia, numa relação de respeito e interdependência com um ambiente que lhes serve de casa e se mostra tantas vezes hostil aos que não dominam desde muito cedo, como eles, os mistérios deste deserto. Crescem sob o cuidado e a proteção dos ancestrais, que lhes aparecem em sonhos, lhes guiam nos tratamentos e na cura, lhes acompanham em espírito pelos caminhos que escolhem ao longo da vida.

Foto 8: Crianças jogando Huela na região do Kuroca, Namibe. Setembro de 2011.


Em três meses vivendo nessas terras, sentada ao redor do fogo em noites frias, comendo da mesma panela, dormindo sobre a mesma areia fofa, tive meu encontro com o outro. Um encontro de curiosidades recíprocas, na verdade, entre dois outros e dois eus. Os de antes profundamente transformados nos de agora, ainda muito e cada vez mais curiosos. Deixei Angola com um senso de aproximação ao inacessível, o inesgotável que me causa ainda certa angústia, mas que expandiu enormemente meu horizonte de imaginação, meu desejo, um anseio por novos encontros – efeito primordial e fascinante, o valor inestimável do ato de viajar.


Créditos das fotos:

Os direitos autorais de todas as imagens são de Milena Argenta. Nenhuma delas pode ser copiada ou publicada sem autorização prévia.


[i] Agradecimentos especiais ao programa de pós-graduação em antropologia social, da universidade federal de Santa Catarina; ao Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas (NUER/UFSC); e ao Centro de Estudos do Deserto (CE.DO), no Namibe, Angola, que viabilizaram minha viagem ao sudoeste de Angola.

[ii] Elocubrações de Victor Crapanzano (2005), em “Horizontes Imaginativos e o aquém e além”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, V. 48 Nº 1.

[iii] Palavras de Ruy Duarte de Carvalho (2000), em “Vou lá visitar pastores: exploração epistolar de um percurso angolano em território Kuvale (1992-1997)”. Rio de Janeiro: Gryphus.

5 comentários:

  1. Texto encantador, e, as imagens falam.

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  2. Esta viagem da minha colega Milena Argenta não teria sido possível sem o CE.DO, Centro de Estudos do Deserto, instituição de acolhimento dos investigadores no deserto do Namibe, que através do seu mentor o antropólogo angolano Samuel Aço convidou investigadores do NUER/UFSC para reflectir sobre as comunidades que apoia. Margarida Paredes

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  3. Lindíssimo,fiquei querendo ler mais!! Aline

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  4. Mi, fiquei encantada com a riqueza narrativa, descrevendo percepções e sensações que nos levam a "vivenciar" a experiência através do seu olhar... quero mais! ;)

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  5. A antropologia nos é generosa por permitir conhecer esse outro. Mas muitas vezes a poesia da experiencia se faz presa entre a vivencia e a escrita.Com minha escrita travada vim visitar a sua. Inspiradora! Letícia

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